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Essa semana a comunidade de jogadores de Overwatch e dos demais jogos da Blizzard em geral ficaram agitados com mais uma grande polêmica dos fóruns americanos. Um jogador achou revoltante a personagem Tracer possuir uma pose de vitória que, segundo ele, não condiz com a real personagem porque ela está numa posição sexualizada. Veja a crítica aqui, em tradução livre e adaptada:

Eu gostaria de iniciar dizendo que, eu acho que a equipe de desenvolvimento tem feito um belo trabalho na escolha de heroínas de Overwatch. Elas são variadas, interessantes e atraentes. De Mei à Zarya até Widowmaker, o elenco feminino reflete um largo espectro de personalidades e fantasias dos jogadores.

Com isso dito, vamos falar sobre a Tracer. Do ponto de vista do marketing, ela é a estrela do show. Ela é uma grande heroína. Quando olhamos para ela retratada pela mídia promocional, lore e arte do jogo, nós sabemos algumas coisas sobre ela.

Ela é rápida.
Ela é bobinha.
Ela é gentil.
Ela é uma boa amiga.
Seu corpo parece ser composto 95% de coragem.

Tudo parece refletir isso. Ela possui ótimas skins, poses legais, ótimas animações de vitória. Toda a arte reforça a grande personagem que construíram em Tracer.

E então do nada nós temos esta pose:

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QUE? O que essa pose tem a ver com o personagem que estão construindo na Tracer? Não é uma pose divertida, boba, não tem nada a ver com ela ser uma assassina rápida de elite. Só está reduzindo-a em outro símbolo sexual feminino.

Nós não estamos procurando por poses da Widowmaker por aqui, essa não é uma personagem que é em partes definida pela ostentação de sua sexualidade. Essa pose está dizendo aos jogadores: “Oh, nós temos toda essa diversidade de personagens legais, mas a qualquer momento podemos reduzi-los em símbolos sexuais pra ajudar a impulsionar o nosso jogo.”

Transformar o jogo em um dos melhores jogos já feitos não é uma tarefa pequena, precisa de um implementador, um líder de equipe, um diretor de arte e um diretor de criação. É um esforço de equipe. Eu acredito que essa equipe é responsável para que Overwatch sustente o grande exemplo para o resto da indústria de jogos em criar personagens femininas fortes.

Eu tenho uma filha que todo dia quando eu acordo ela quer assistir o trailer “Recall” novamente. Ela sabe quem é Tracer, e quando ela crescer, ela pode crescer junto dessas personagens.

O que estou pedindo é que vocês enquanto continuam adicionando personagens ao elenco de Overwatch e investindo em características do jogo, vocês dobrem o compromisso de criar personagens femininas fortes. Vocês têm feito um ótimo trabalho até agora, mas colocar a Tracer numa pose como essa prejudica muito das coisas boas que vocês já fizeram.

Pois bem, feita a crítica e algumas páginas de discussão depois, Jeff Kaplan (game director de Overwatch) pessoalmente respondeu o tópico e trancou a discussão com uma resposta surpreendente:

Originalmente postado por Jeff Kaplan

We’ll replace the pose. We want *everyone* to feel strong and heroic in our community. The last thing we want to do is make someone feel uncomfortable, under-appreciated or misrepresented.

Apologies and we’ll continue to try to do better.

Tradução: Nós vamos substituir a pose. Queremos que *todos* sintam-se fortes e heroicos na nossa comunidade. A última coisa que queremos é fazer alguém se sentir desconfortável, subestimado ou mal representado.

Sentimos muito e continuaremos tentando fazer melhor.

Com essa resposta, a polêmica realmente se instaurou. A maioria dos jogadores se posicionava contra a remoção da pose de Tracer, enquanto a Blizzard prontamente atendia o pedido do jogador que se ofendeu com a pose que muitos julgavam não ter nenhum problema e não ser sexualizada. E isso só nos fez notar que mais uma vez há uma enorme problematização em cima do corpo de personagens dentro dos jogos que é jogada debaixo do tapete. E essa discussão não há pelo simples motivo de que toda vez que alguém tenta conversar sadiamente sobre temas relacionados a gênero dentro dos jogos, a comunidade se infla de pessoas que fogem da discussão argumentando que é tudo mimimi, que feminismo é bobagem ou que é encheção de saco da “geração mimimi problematizadora”. E o caso da Tracer, assim como o da Sylvanas em World of Warcraft alguns meses atrás, refletem que sim, precisamos falar de gênero nos jogos virtuais também.

E calma, não desista do post ainda! Vamos falar do que todo mundo quer realmente falar: as nádegas da Tracer.

A pose que o/a autor(a) do post do fórum em inglês se chama “Por cima dos ombros” [looking over the shoulder, em inglês], e claramente mostra Tracer olhando por cima do seu ombro. Eu não sei se vocês já notaram, mas pessoas em geral possuem nádegas. Umas mais, outras menos que as outras. Tracer é uma personagem que usa uma calça legging de spandex , e quando você tira foto dela de costas, obviamente que glúteos irão aparecer. Ela ainda é uma das personagens que não usa uma capa, saia ou vestido para esconder os fundilhos, então é inevitável. Então é uma pose como qualquer outra, e se você se incomoda com um bumbum ali, o problema é você. Seres humanos no geral possuem nádegas e não têm muito o que fazer pra evitar que elas existam.

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No entanto, há algo a se problematizar sim em relação à roupa de Tracer e de outras personagens de Overwatch. A sexualização existe, a gente sabe disso. Mesmo Tracer usando roupas confortáveis, tecido maleável, tênis e uma armadura forte, o spandex da legging dela deixa bem marcado a linha das nádegas, assim como na Widowmaker, Mei e Mercy, o tecido e a armadura contornam os corpos delas deixando expostos todas as linhas, como se fosse pinturas corporais. Acho as roupas das heroínas belíssimas, mas essa sensualização só me deixa imaginando o quão desconfortável deve ser correr, pular e lutar pelo mundo com uma calça de látex enfiada lá, ou com os peitos pulando pra lá e pra cá. Quando você veste uma roupa, ela se encaixa em você e tem uma marcação correta no seu corpo, e não acho que elas perderiam beleza e talento com roupas que marcassem o corpo da maneira correta, sem essa hipersexualização. Então se há uma crítica e um pedido que eu faria aos desenvolvedores, seria: mais realismo e conforto pra nossos heróis, ok?

E mais: quem disse que mulheres fortes não podem ser sexys? Quem disse ser bobinha, engraçada, gentil e boa amiga não significa que você pode também ser linda e desejável? Aceitamos a hipersexualização da Widowmaker por ela ser uma “vilã” em Overwatch, porque estamos acostumados a conhecer vilãs sexys e porque estamos acostumados a vê-las usarem isso a seu favor. Mas tanto a Widowmaker quanto a Tracer, quanto a Mei ou a Zarya, e qualquer outro herói ou heroína merece ser sexy sim do jeito que seu corpo for. Ser alguém que se sente bem consigo mesmo é um super poder também, e fazer poses imponentes é um direito seu, então deixem a Tracer ter a pose sexy que ela quiser, desde que isso respeite sim a personagem que ela é.

Essa blusa é adesiva pra manter tudo isso aí dentro, só pode

Essa blusa é adesiva pra manter tudo isso aí dentro, só pode

Por último, gostaria de terminar com a explicação póstuma de Kaplan depois de toda a polêmica na comunidade nesses dois dias e fazer algumas adições:

Originalmente postado por Jeff Kaplan

Well, that escalated quickly…

While I stand by my previous comment, I realize I should have been more clear. As the game director, I have final creative say over what does or does not go into the game. With this particular decision, it was an easy one to make—not just for me, but for the art team as well. We actually already have an alternate pose that we love and we feel speaks more to the character of Tracer. We weren’t entirely happy with the original pose, it was always one that we wrestled with creatively. That the pose had been called into question from an appropriateness standpoint by players in our community did help influence our decision—getting that kind of feedback is part of the reason we’re holding a closed beta test—but it wasn’t the only factor. We made the decision to go with a different pose in part because we shared some of the same concerns, but also because we wanted to create something better.

We wouldn’t do anything to sacrifice our creative vision for Overwatch, and we’re not going to remove something solely because someone may take issue with it. Our goal isn’t to water down or homogenize the world, or the diverse cast of heroes we’ve built within it. We have poured so much of our heart and souls into this game that it would be a travesty for us to do so.

We understand that not everyone will agree with our decision, and that’s okay. That’s what these kinds of public tests are for. This wasn’t pandering or caving, though. This was the right call from our perspective, and we think the game will be just as fun the next time you play it.

If it isn’t, feel free to continue sharing your concerns, thoughts, and feedback about this and other issues you may have with the game, please just keep the discussion respectful.

Thanks,

Jeffrey

Tradução: Bem, isso se intensificou rapidamente…

Enquanto eu permaneço sobre meu comentário anterior, eu notei que eu precisava ser mais claro. Como diretor do jogo, eu tenho a palavra final do que vai e do que não vai para o jogo. Com essa decisão particular, foi uma fácil de se fazer — não só para mim, mas para a equipe de arte também. Nós atualmente já temos uma pose alternativa que amamos e achamos que mostra mais a personalidade da Tracer. Nós não estávamos inteiramente felizes com a pose original, foi uma que sempre lutamos pela criatividade. A pose ter sido posta em questão pelo ponto de vista de adequabilidade pelos jogadores ajudou a influenciar a nossa decisão — e obter esse tipo de feedback é parte da razão de nós estarmos mantendo o beta fechado até agora — mas não foi o único fator. Nós tomamos essa decisão de colocar uma outra pose em parte porque dividimos algumas preocupações, mas também porque queríamos criar algo melhor.

Não faríamos nada para sacrificar nossa visão criativa em Overwatch, e não iremos remover algo só porque alguém teve algum problema com isso. Nosso objetivo não é diluir ou homogeneizar o mundo, ou o diverso elenco de heróis que construímos dentro dele. Temos derramado tanto de nossos corações e almas nesse jogo, que fazer isso seria uma farsa.

Entendemos que nem todos vão concordar com nossa decisão, e tudo bem. Por isso que esses tipos de testes públicos servem. Isso não foi para nos favorecer ou pressionar, também. Esta foi, da nossa perspectiva, a escolha certa, e achamos que o jogo continuará sendo tão divertido como é na próxima vez que você o jogar.

Se ele não for, sinta-se livre para continuar partilhando suas preocupações, pensamentos e feedbacks sobre isso e outros problemas que você possa ter com o jogo, só por favor mantenha a discussão respeitosa.

Obrigado,

Jeffrey. 

Jeff já tinha todas as cartas na manga, ele só não soube conversar com a comunidade e explicar direito o que estava acontecendo. Fico imaginando quantas tretas mundiais não teriam sido resolvidas com uma boa conversa. E sim, precisamos conversar mais. Precisamos falar o porquê é tão revoltante pra alguns que a Tracer tenha nádegas, e o quanto é aceitável que Widowmaker seja extremamente sexualizada só porque ela é o esteriótipo de menina má. Precisamos conversar sobre uma pose que se chama “Por cima dos ombros” de repente virar uma discussão sobre o corpo de uma personagem, e há pessoas que apoiam que a pose seja censurada só porque a acham ofensiva. Precisamos conversar sobre toda crítica sobre sexualização de personagens femininas virar “mas i uzomi tudo exibindo os músculos tudo pelado também vocês não falam nada?“, como se historicamente o corpo masculino fosse utilizado como mercadoria, erotizado, idealizado e imposto ao universo masculino da mesma maneira que o corpo feminino é idealizado, mercantilizado e erotizado ao universo feminino como forma a agradar aos homens. Precisamos conversar em como não uma coisa não se compara a outra.

Precisamos também conversar em como nunca ouvimos as funcionáriAs da Blizzard se retratarem sobre as personagens que elas mesmas criam, e se suas opiniões realmente são ouvidas ali dentro. Precisamos conversar em como estamos impondo nossas opiniões sem discussão, e exigindo que mudanças sejam feitas com base nos nossos padrões morais sem saber a opinião do colega do lado. Precisamos conversar pra saber o que o outro pensa, e saber se o que pensamos ofende as outras pessoas ao nosso redor. Precisamos conversar sobre se é correto dizer que uma foto de uma personagem com roupa de ginástica de costas é ofensiva, sendo que o corpo dela não lhe diz respeito, e sobre qual a sua autoridade em apontar o dedo e dizer que aquilo é errado e que deve ser censurado porque “a personagem não é assim”.

E talvez sejamos mesmo a geração “mimimi”, mas se isso significa que precisamos conversar mais sobre muito das coisas que consideramos injustiças com nosso gênero, com nossa cor, com nossa classe social, sejamos essa geração de pessoas que saibam questionar e debater para mudar esse status quo. Hoje em dia nós conseguimos mudar muita coisa sentados no conforto do nosso lar apenas movimentando os dedinhos, desde que tenhamos a mente aberta para aceitar novas opiniões e entender as críticas alheias. Deixe de lado a hashtag #mimimi e vamos falar mais sobre mulheres fortes dentro de jogos e entender o que isso significa. É uma roupa colada? É uma personalidade corajosa? É uma risada marcante? É uma arma enorme? É um cabelo colorido? É uma alma gentil? Vamos ver o que pode vir de resultado dessa conversa. Na minha opinião, só pode sair coisa boa. 🙂

Então, vamos conversar mais?